Liberdade Econômica: causa ou efeito da evolução da civilização?

27.03.201910h42 Comunicação - Marketing Mackenzie

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Liberdade Econômica: causa ou efeito da evolução da civilização?

 Prof. Dr. Adilson Caldeira

 

Discorrendo sobre a evolução do ser humano ao longo da história, Friedrich August von Hayek (1899-1992)1 estabelece um paralelo entre a formação e desenvolvimento da constituição biológica do homo sapiens e a evolução cultural refletida em suas regras de conduta. O resultado proporciona argumentos racionalmente construídos que evidenciam a dinâmica de mudanças no comportamento da sociedade e o grau de civilização alcançado.

O instinto levou sucessivas gerações humanas a se adaptar à vida em grupo, inicialmente sob a forma de bandos ou trupes. Por acúmulo de conhecimento construído empiricamente e herança genética, as pessoas foram desenvolvendo a consciência sobre os benefícios da união e cooperação para o alcance de objetivos comuns para lidar com perigos e oportunidades, tais como a necessidade de abrigo e a fonte de alimentos.

Paralelamente ao respeito à experiência dos mais velhos do grupo e ao instinto de solidariedade e altruísmo, a coordenação das atividades foi gradativamente sendo pautada por percepções compartilhadas, materializadas nas regras de conduta. Assim surgiu o que se caracteriza como “moralidade natural”, decorrente de instintos que uniam um grupo reduzido e asseguravam a cooperação dentro dele.

Com a ampliação dos grupos, tanto em termos de número de integrantes quanto em ocupação de espaço territorial, as regras de comportamento foram inibindo cada vez mais os indivíduos a fazer o que seus instintos determinavam para se adequar aos princípios compartilhados pela coletividade. A moralidade, como é atualmente entendida, representa um conjunto de princípios que delineiam o comportamento de acordo com o que se considera correto, virtuoso e adequado para um indivíduo.

A moralidade, então, constitui um mecanismo desenvolvido com a finalidade precípua de suscitar ordem. Por necessária que seja, contudo, essa ordem surge do sacrifício da liberdade do indivíduo em seguir seus instintos naturais, de modo a contrariar seus predicados biológicos.  A contrapartida de tal condição está nos benefícios à comunidade que a obediência às regras determinadas pela moralidade proporciona.

Dentre as regras abstratas relativas à responsabilidade individual encontram-se as que se praticam na economia de um país. Por princípio, a economia se preocupa com a ordenação das atividades de mercado na interação humana. Os indivíduos se inserem em uma conjuntura de instituições e tradições econômicas às quais se adaptam pela obediência às regras de conduta determinadas em sistemas de preços no mercado de trocas e direitos a propriedade.

Da mesma forma que a moralidade leva o indivíduo a sacrificar instintos biológicos para o bem coletivo e é fruto do desenvolvimento dessa consciência comunitária, um sistema econômico só será bem-sucedido se os indivíduos enxergarem os benefícios de seu sacrifício individual para o desenvolvimento social da nação a que pertencem.

Como destaca Hayek, o comércio é mais antigo que o Estado. Ainda que raramente soubessem muita coisa a respeito das necessidades individuais específicas a que serviam, pessoas se tornaram comerciantes combinando instinto e adaptação a regras e costumes tradicionais em busca de sobrevivência e conquista de patrimônio. Para a organização das atividades de troca, surgem regras reconhecidas e praticadas pelos agentes econômicos em prol da ordem de mercado e consequente benefício coletivo. Ou seja, ainda que necessitem sacrificar interesses individuais instintivos, os agentes de mercado se adaptam a um padrão de conduta em decorrência da própria moralidade estabelecida.

O crescimento das dimensões dos grupos conduz a uma sensação de necessidade de criação de organismos reguladores com poder de intervenção em nome da ordem. Surge, então, o Estado, com o papel de regular o mercado e com isso assegurar sua estabilidade e a segurança proporcionada aos investidores. Se, de um lado, estabilidade e segurança se revelam necessárias, esse papel faz com que os governos se apliquem mais a impedir do que promover o desenvolvimento do mercado.

Há o risco do estabelecimento de um círculo vicioso de intensificação da intervenção regulatória, conduzindo a efeitos negativos. Um desses efeitos, comumente observado, é o contínuo crescimento das dimensões estruturais do poder público. Além de ampliar sistematicamente o nível de regulamentações, o Estado tende a assumir a responsabilidade produzir e oferecer bens e serviços originalmente fornecidos pelo setor privado, aumentando a burocracia e inibindo a competitividade no processo produtivo.

Sempre sob o pretexto da necessidade de ordem, o governo cresce, demandando igual ampliação de orçamento e gastos mais elevados. Contrariando o papel essencial de atender aos interesses e necessidades da sociedade, os gastos com estrutura de um governo com dimensões exageradas podem reduzir os incentivos para gerar renda.

Altas taxas de impostos reduzem lucros gerados pela atividade empresarial privada, o que afeta o potencial de desenvolvimento econômico. A ampliação estrutural de um governo tende a aumentar a evasão fiscal. Inicialmente, porque pode desestimular o registro formal de negócios, porque o financiamento do orçamento público resulta em impostos mais altos e maiores custos de conformidade em decorrência de maior regulamentação do mercado. Além disso, baixa confiança no uso do governo do imposto cobrado e sentimento de injustiça na distribuição de renda podem conduzir a diferentes formas de sonegação fiscal, nem sempre consideradas imorais pelos indivíduos que as praticam.

Outro efeito a considerar é o fato de que grandes estruturas governamentais geralmente levam a políticas tributárias complexas e concentração de poder de compra nas empresas e órgãos públicos, criando oportunidades para a corrupção, possibilitando que, para sobreviver à burocracia e realizar negócios, agentes da iniciativa privada redirecionem recursos a pagamentos ilícitos destinados à obtenção de favores e privilégios. Em países corruptos, os contribuintes têm pouca confiança de que as receitas da tributação serão realmente usadas adequadamente para oferecer serviços públicos e outros benefícios comunitários. Cria-se, então, um conflito caracterizado pelo viés moral de aceitação de atitudes nos negócios que, em essência, representam práticas corruptas e que contrariam o interesse da maioria dos indivíduos que compõem um grupo social.

Em síntese, a moralidade contém elementos que representam causas ou efeitos da evolução cultural e do grau de civilização por ela criado. Diante da complexidade inerente ao julgamento sobre se um indivíduo prefere viver em uma sociedade mais civilizada do que incivilizada, Hayek propõe que a única coisa que se aproxima de uma avaliação objetiva da questão é ver o que fazem as pessoas quando têm oportunidade de escolha. Se é fato que a suposta garantia de segurança e bem-estar da sociedade proporcionada pelo Estado é vista como uma aplicação da evolução da civilização, também se evidencia que a falta de liberdade de escolha restringe essa evolução. O grau de civilização de uma sociedade corresponde à liberdade conferida para que a conduta individual esteja de acordo com os interesses coletivos.

Os atuais rankings de Liberdade Econômica refletem essa condição. Calculados a partir de aspectos como tamanho do governo e sua intervenção no mercado interno e internacional, sistema legal, direitos de propriedade e solidez da moeda, Instituto Fraser e Heritage Foundation classificam os países pelo grau de Liberdade Econômica neles observado. Cotejando esses rankings com dados como a velocidade na geração de riqueza (crescimento econômico), grau de empreendedorismo e inovação, padrão de vida da população (renda per capita), índice de desenvolvimento humano (IDH), taxa de pobreza, nível de mobilidade social ascendente (progresso social), democracia e meio ambiente, evidencia-se correlação positiva entre Liberdade Econômica e ganhos sociais.

Consolida-se, assim, a associação proposta por Hayek, entre Liberdade Econômica e grau de civilização.      

1 HAYEK, F. A. von. Os  erros fatais do socialismo. 1ª. Ed. Barueri: Faro Editorial, 2017.

 

O Prof. Dr. Adilson Caldeira é Pesquisador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica e docente do Mestrado Profissional em Administração do Desenvolvimento de Negócios da Universidade Presbiteriana Mackenzie