A recente prisão de vários membros da cúpula do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro reacendeu a discussão acerca dos limites da competência de governos para legislar, regular mercados e gerir orçamentos. Para choque da nação, os responsáveis por fiscalizar a gestão dos bens públicos acabaram aliando-se a membros da administração para fins de saque ao erário. Esse problema, embora comum no Brasil e alhures, é pouco estudado sob a perspectiva da escola da escolha pública e da teoria da captura, e merece maiores reflexões.
De acordo com a clássica teoria da regulação, um Estado deve intervir regulando com vigor a economia para evitar as chamadas falhas de mercado, onde o custo marginal social de uma determinada ação econômica seria maior do que o benefício marginal desta, como no caso de falhas técnicas ou falhas morais.
Sobre as falhas morais, ou seja, a suposta prevalência do autointeresse do agente econômico no mercado livre, há de se perceber que, mesmo não sendo o mercado o instrumento de contenção de más condutas, o ambiente de competição força o agente mais autointeressado a ter que servir bem ao próximo para obter desse a aprovação para realização de um negócio para proveito próprio. Portanto, o mercado livre e desembaraçado induz o mais egoísta dos agentes a agir de maneira pacífica, conciliadora e prestativa.
Quando se analisa friamente as chamadas falhas técnicas, que são as transferências ou distorções dos custos do uso de bens da natureza pelo agente econômico para toda a sociedade, como no caso do efeito-vizinhança, da tragédia dos bens comuns ou da concentração de mercado, fica claro que a origem do problema não está nos promotores da ação econômica, mas sim nas instituições que fundamentam e dão suporte às organizações e aos indivíduos em geral, sendo, na prática, mais falhas de Estado e menos falhas de mercado.
De forma a investigar com mais afinco a presença dessas falhas de Estado na economia, muitos acadêmicos foram, pouco a pouco, criando teses sobre o tema, até a formação da chamada “Escola da Escolha Pública”, com foco na eficiência das instituições para promoção de uma economia livre.
Dentre as várias contribuições desta escola, destaca-se a “teoria da captura” no campo da regulação. De acordo com essa teoria, a concentração de poder regulador e fiscalizador em uma entidade burocrática estatal levaria à criação de incentivos econômicos perversos junto aos agentes de mercado para corromper agentes públicos, distorcendo a liberdade de determinado mercado através de licenciamentos, tributações, padrões de qualidade, subsídios, cartelizações forçadas, autorizações, legislações trabalhistas, dentre outros meios de concentração e distorção do meio econômico.
Em última análise, seria simplesmente mais barato e/ou lucrativo corromper um pequeno grupo de reguladores do que precisar satisfazer milhares ou milhões de consumidores ávidos por produtos mais baratos e de melhor qualidade a cada instante. Daí o resgate da famosa frase do poeta romano Juvenal pelos pesquisadores desse fenômeno: “quis custodiet ipsos custodes?” (ou “quem vigia os vigilantes?”).
Muito embora esteja plenamente desenvolvida a pesquisa na relação entre agências reguladoras e mercado, o tema encontra-se pouco desenvolvido quando se vê a relação entre órgãos estatais de diferentes funções que possuam obrigatoriedade de fiscalização ou restrição de poder, uns dos outros, dentro do sistema de freios e contrapesos no sistema de separação de poderes.
A ideia de separação e especialização de poderes vem de Aristóteles, que identificou a importância da dispersão de funções públicas como forma de restringir as paixões humanas.
João Calvino destacou com maior ênfase o problema das falhas inerentes à natureza humana desaguar em uma gestão política antiética: “em virtude dos vícios ou defeitos dos homens, é mais seguro e mais tolerável quando diversos exerçam o governo, de sorte que, assim se assistam mutuamente, ensinem e exortem uns aos outros; e, se alguém se exalta mais do que lhe é justo, muitos sejam censores e mestres para coibir-se seu desregramento”. (Inst.IV. 20.8)
Posteriormente, Montesquieu elaborou, no clássico “O Espírito das Leis”, a teoria da separação de poderes.
De acordo com a ideia de separação de poderes, as funções legislativa (elaboração das leis), executiva (execução administrativa das leis) e judiciária (julgamento e aplicação das leis em conflitos concretos) deveriam ser feitos por órgãos distintos e independentes entre si. Além dessa divisão horizontal de poderes, deveria haver também uma divisão vertical, ou seja, cada função pública seria compartilhada por diversos indivíduos dentro da estrutura funcional, evitando ao máximo a concentração burocrática nas mãos e um ou poucos homens.
Mas mesmo com essa divisão e separação horizontal e vertical pode haver abusos pontuais de um ou outro agente burocrático, de onde se tem a necessidade de revisão desses atos por outros órgãos: os freios e contrapesos.
A ideia de freios institucionais funciona dentro da restrição e revisão de atos públicos por outros poderes, caso abusivos. Nesse exemplo, o poder legislativo poderia rever atos dos poderes executivo e judiciário; o executivo poderia rever atos dos poderes legislativo e judiciário; e o judiciário poderia rever atos dos poderes executivo e legislativo.
Já a ideia dos contrapesos seria o exercício de funções típicas de outros poderes para também diminuir a concentração de força e o abuso. Portanto, o poder legislativo teria competência circunstancial executiva e judiciária; o poder executivo teria competência circunstancial legislativa e judiciária; e o poder judiciário teria competência circunstancial executiva e legislativa.
Como se vê, a lógica da regulação e fiscalização de agentes públicos por órgãos públicos independentes nasce da mesma origem da necessidade de regulação e fiscalização de agentes de mercado por agentes reguladores. Logo, a aplicabilidade das teorias de escolha pública, em especial a teoria da captura, na relação “Administrador fiscalizado – Órgão Público fiscalizador” é a mesma da relação “Administrado regulado – Órgão Público regulador”.
No caso concreto, assim como a concentração de poder regulador de uma Agência leva à criação de incentivos para o empresário corromper o burocrata, a concentração de poder fiscalizador de um Tribunal de Contas, e até mesmo de um Poder Legislativo, já que os Tribunais de Contas são meros auxiliares de uma Casa Legislativa, leva à criação de perversos incentivos para os membros da Administração Pública corromperem legisladores e secretários ou ministros de Tribunais de Contas.
Em suma, a teoria da captura incide diretamente na relação entre Poder Executivo e seu poder fiscalizador (Poder Legislativo e Tribunais de Contas).
A teoria, exposta no Globo, de que o modelo de indicações políticas dos Tribunais de Contas seria o problema central que gerou os desvios, nada mais é que uma falsificação da realidade. Embora o rito de indicação de conselheiros seja excessivamente político, uma vez indicado, o conselheiro se torna independente no âmbito funcional, não podendo ser demitido, claramente não sendo esse o principal problema gerador dessa corrupção. Ademais, no caso do Rio de Janeiro, dos sete conselheiros, três são nomeados pelo Governador, três pela ALERJ e um pela ALERJ via Ministério Público. Portanto, dentro de uma dinâmica democrática, acabando por não serem chancelados e aprovados pelo mesmo grupo político.
O verdadeiro problema está no excesso de poder político e recursos financeiros junto às máquinas públicas brasileiras. Certamente que reformas institucionais, aumento de freios e contrapesos e um sistema judiciário eficaz são grandes apoiadores na busca pela moralidade na gestão pública, mas, se todos os sábios já citados anteviram que a natureza humana é falha, sempre haverá quem sucumba às próprias paixões.
Lord Acton dizia que “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Se estamos tentando responder à indagação de Juvenal, a melhor maneira de não se preocupar sobre quem vigia os vigilantes é conceder poucos poderes, tanto para os vigilantes, quanto para os vigiados, da maneira mais desconcentrada e descentralizada possível, de modo a termos poucas pessoas caindo na corrupção, seja relativa ou absolutamente.
Em outras palavras, devemos aplicar as soluções apresentadas pela Escola da Escolha Pública, nos casos de captura de agências reguladoras pelo mercado, também para os casos de órgãos públicos fiscalizadores capturados por órgãos públicos fiscalizados. Se no primeiro caso a melhor opção é termos menos regulamentações e mais liberdade econômica, no segundo caso precisamos ter menos burocracia, menos tributos nas mãos dos burocratas e menos competências e responsabilidades estatais.
E para o caso de isso não ser o suficiente, e nunca é, então que todos estejam se vigiando e fiscalizando mutuamente contra fraudes e corrupção: mercado, governo e sociedade civil organizada. Afinal, como diria o grande Thomas Jefferson, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”.
