O que foi construído nos últimos 80 anos está em xeque e não está claro o que haverá no lugar – e o Brasil precisa ser estratégico.
O ano de 1945 marcou o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da construção de instituições de governança global, como a ONU, o FMI, o Banco Mundial e o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) – este último posteriormente transformado na OMC. Essas instituições foram criadas com um objetivo central: evitar a repetição dos erros da década de 1930, como os embargos comerciais, as tarifas de importação elevadas e o retrocesso do comércio internacional. Mais do que isso, pretendiam fazer da integração econômica e da interdependência entre as nações um antídoto contra o risco de uma nova guerra mundial. Em 2025, porém, esse sistema foi colocado em xeque a partir de dentro – justamente pelos Estados Unidos, o principal arquiteto de sua fundação.
Nos últimos meses, o governo do presidente Donald Trump tem distorcido a lógica econômica consagrada desde Adam Smith, em 1776. Segundo essa lógica, a riqueza de uma nação não reside na obtenção de superávits comerciais, mas na alocação eficiente do trabalho e dos recursos produtivos, de forma a elevar o bem-estar material — especialmente o consumo das famílias. Nesse contexto, o comércio internacional é visto como uma alavanca essencial: ao permitir o acesso a uma maior variedade de bens de consumo e insumos a preços mais baixos por meio das importações, e ao promover, por meio das exportações, ganhos de escala, divisão do trabalho e aumento da produtividade, graças à especialização em setores nos quais o país possui vantagens competitivas.
Os Estados Unidos, em desrespeito a dezenas de acordos e protocolos comerciais anteriores — inclusive os estabelecidos pela OMC —, aumentaram as tarifas de importação para todos os seus parceiros comerciais, incluindo a Europa, tradicional aliada. No caso da China, o aumento foi especialmente severo, chegando a 125%, com efeitos praticamente impeditivos. Embora tenham sido anunciadas tarifas recíprocas, a aplicação da medida foi adiada por 90 dias (exceto no caso da China), permitindo que os países afetados tentem negociar individualmente com os Estados Unidos. A iniciativa força a celebração de novos acordos bilaterais com os EUA, maior mercado consumidor do mundo, e pode levar os parceiros comerciais a reduzirem suas tarifas de importação sobre produtos americanos. O que já está definido, no entanto, é que uma tarifa mínima de 10% sobre importações passará a vigorar de forma permanente.
Duas interpretações principais têm sido debatidas em torno das recentes medidas adotadas pelos Estados Unidos. A primeira as vê como parte de uma estratégia agressiva de negociação: uma ação radical que visa atrair os parceiros comerciais para a mesa de diálogo, com o objetivo de assegurar concessões em favor dos EUA, especialmente em um contexto de avanço da China e perda relativa de influência americana. A tarifação das importações, nesse cenário, não é apenas uma questão econômica, mas um instrumento de pressão com implicações geopolíticas e de segurança nacional, voltado a conter as ambições chinesas. Assim, os custos econômicos imediatos para a economia norte-americana seriam encarados como um sacrifício necessário em troca de ganhos futuros nas exportações e na recuperação de seu protagonismo global.
A segunda interpretação das medidas adotadas pelos Estados Unidos aponta para uma visão personalista e errática da presidência, marcada por um preconceito persistente em relação ao déficit na balança comercial americana — um desequilíbrio amplamente compensado pelos expressivos superávits na balança de serviços e na conta de capitais. Essa visão idealiza o passado, especialmente os 'anos dourados' das décadas de 1950 e 1960, como um período de supremacia econômica a ser resgatado. No entanto, analistas que adotam essa leitura destacam que os indicadores atuais da economia americana — como a produtividade, o consumo per capita, os salários reais na indústria manufatureira e os níveis de produção — nunca estiveram tão elevados. A exceção são os setores de têxteis, vestuário e artigos de couro, que, sendo tecnologicamente menos avançados, perderam participação nas últimas duas décadas e meia.
O impacto da China sobre o emprego industrial nos EUA, embora frequentemente exagerado, é estimado em cerca de 3 milhões de vagas perdidas ao longo desse período — um número modesto diante dos mais de 2 milhões de empregos encerrados mensalmente no país, ao lado da criação de outros milhões. Assim, a lógica das medidas protecionistas ignora as evidências empíricas e desorganiza as cadeias produtivas dos EUA. Quando somadas às restrições à imigração, essas ações elevam os custos de produção e pressionam a inflação. O resultado é uma expectativa crescente de estagflação — um cenário de inflação alta com baixo crescimento — com repercussões globais e perda de bem-estar para a população americana.
Independentemente da interpretação adotada sobre as mudanças em curso, é inegável que o mundo está passando por uma transformação profunda — e o rumo dessa transição ainda é incerto. Nesse contexto, o Brasil precisa agir com estratégia e habilidade diplomática, retomando a tradição que sempre caracterizou sua atuação internacional. Não há espaço para posturas ideológicas; é hora de adotar um pragmatismo inteligente.
Embora o Congresso Nacional tenha aprovado medidas que conferem ao Executivo o poder de retaliar comercialmente, essas prerrogativas devem ser evitadas. O caminho mais promissor para o Brasil é o da negociação: buscar acordos comerciais e soluções diplomáticas em vez de adotar posturas de confronto.
Este é o momento de negociar com os Estados Unidos, assegurando acesso ao maior mercado consumidor do mundo. É também a hora de intensificar o diálogo com a União Europeia, avançando para a ratificação e entrada em vigor do acordo de livre comércio Mercosul–UE. Além disso, o Brasil deve estar atento à crescente demanda chinesa por insumos, como produtos do agronegócio e da mineração, que tende a se deslocar dos EUA devido às medidas retaliatórias em curso.
Oportunamente, o país pode aproveitar esse novo cenário para ampliar as importações de máquinas e equipamentos que modernizem sua indústria, além da infraestrutura, e receber de forma estratégica os investimentos estrangeiros diretos — especialmente os que poderiam se destinar aos EUA, como os europeus e chineses.
Mais do que nunca, o Brasil deve evitar o isolamento e a adoção de novas barreiras comerciais. Ao contrário, abrir suas fronteiras de forma inteligente e seletiva é a melhor estratégia para transformar a crise global emergente em uma oportunidade concreta de desenvolvimento e reposicionamento internacional.