A contribuição da universidade para a ética na política

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Carta de Princípios 2006

20.02.2006 Chancelaria

Rev. Augustus Nicodemus Lopes


Anualmente, a Chancelaria desta Universidade publica uma Carta de Princípios, em que expõe um tema de destaque e relevância para nossa comunidade. 

Você tem em mãos a Carta de Princípios da Universidade Presbiteriana Mackenzie para o ano de 2006.

Neste ano, o tema escolhido foi "A CONTRIBUIÇÃO DA UNIVERSIDADE PARA A ÉTICA NA POLÍTICA". O objetivo desta Carta, que também serve como material de discussão na disciplina Ética e Cidadania, é divulgar a visão da Mantenedora sobre esse assunto.

A escolha do tema deveu-se não somente ao seu caráter desafiador, mas também ao empenho, desenvolvido pela Chancelaria junto à Universidade, em fazer conhecidos, respeitados e levados em conta os princípios cristãos desta Instituição. Como parte do Planejamento Estratégico do Instituto Presbiteriano Mackenzie, a Carta visa esclarecer alguns pontos cruciais do assunto e promover um ambiente de compreensão e cooperação entre a Mantenedora e a Universidade.

Por esse motivo, apresento-a com alegria e expectativa
A Contribuição da Universidade para a Ética na Política

 

Introdução

O termo “política” é usado para os procedimentos, os meios e as estratégias empregados pelas autoridades para alcançar os fins do Estado. Política é, portanto, a ciência de governar. 
Por causa das deficiências inerentes ao próprio poder e pela corrupção espiritual e moral dos seres humanos, a política acaba invariavelmente cedendo a ambições despóticas e egoístas, servindo a outros fins que não os legítimos. A isso chamamos de corrupção. Historicamente, a corrupção na política é tão antiga quanto o Estado, variando apenas em intensidade de acordo com os valores morais, a cultura e a religião do lugar.

A expressão “ética na política” expressa o desejo de que o poder político seja exercido da forma correta e para os fins legítimos. Ela ganhou muita atenção recentemente em nosso país diante de denúncias de corrupção envolvendo pessoas públicas de diferentes níveis de autoridade. Em decorrência, muitas propostas e movimentos em favor da ética na política têm surgido.

A necessidade de um referencial distinto para a ética na política.
O que se percebe claramente num primeiro olhar sobre a ética na política é a necessidade de referenciais seguros e consistentes nos quais os apelos à moralização sejam fundamentados. Toda ética pressupõe um conjunto de valores com base nos quais se tomam decisões. Todavia, desconstruída pelo relativismo moral e pelo individualismo de nossos dias, a ética na política aparenta carecer de fundamentos coerentes que lhe permitam fazer pronunciamentos morais e moralizantes. Qual a base para se clamar por honestidade, sensibilidade, verdade, sinceridade, integridade e altruísmo na política se estes são conceitos considerados relativos e subordinados ao pragmatismo individualista, conforme a mentalidade de nossa época? Qual a base para se clamar em prol dos oprimidos, excluídos e sem-nada do nosso país se o ser humano é visto como fruto do meio e da seleção natural, onde sobrevivem os mais aptos, leia-se, os mais espertos, independentemente dos meios que se utilizam para isto?

Em grande parte, este vácuo de absolutos foi gerado pela secularização gradual das culturas e do Estado e pelo abandono no Ocidente dos valores morais e espirituais do cristianismo, que um dia serviram de fundamento para o surgimento das políticas democráticas. O humanismo materialista, centrado no anthropos, não tem conseguido produzir um sistema de valores abrangente que permita uma chamada coerente à ética na política. Entendemos que a ética protestante reformada está fundamentada em princípios e valores revelados por Deus nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamento, a Bíblia, e que, portanto, oferece uma visão unificada e coerente da vida e um apelo consistente à moralização do Estado. Quando na História, antiga e moderna, governantes e regimes despóticos e totalitários reivindicaram fundamentação no cristianismo para suas barbáries, estavam, na realidade, fugindo do ensinamento do cristianismo bíblico e histórico.


O Protestantismo Reformado e a Política

Aqui é preciso fazer um esclarecimento. Nem todos os políticos chamados de evangélicos se mantêm sob o direcionamento e com a visão das grandes doutrinas levantadas pela Reforma do Século XVI. Na verdade, alguns segmentos mais recentes, mesmo apresentados como evangélicos, até mesmo procuram se dissociar dessas doutrinas. 

A força política do protestantismo reformado se fundamenta em diversas premissas sobre Deus e sobre o homem ensinadas na revelação bíblica. São elas: a igualdade de todos os homens diante de Deus, a vocação individual de cada ser humano por Deus, a doutrina do sacerdócio universal de todos os cristãos genuínos, que entende que a autoridade deve ser exercida como uma delegação concedida por Deus ao povo e do povo aos governantes, a doutrina da autoridade das Sagradas Escrituras, a Bíblia, que despertou o povo para estudar, instruir-se e assim gerir seus destinos, e o ensino de que as autoridades políticas são constituídas por Deus e respondem diante dele pelo exercício do poder. Conforme o estudioso francês André Biéler, “a democracia não consegue instalar-se nem permanecer lá, onde as premissas religiosas ou filosóficas profundas das populações são estranhas aos princípios evangélicos, iluminados pelo Cristianismo reformado” (1999, p.50).

O principal conceito da visão reformada quanto à política é que somente Deus tem poder absoluto. Desse conceito decorrem vários princípios que moldam a visão reformada da política e apontam o caminho da ética. Mencionamos alguns deles.

1) A fé reformada faz a clara distinção entre Igreja e Estado, mas vê toda autoridade como procedente de Deus (Epístola aos Romanos 13). Os governantes são vistos como servos de Deus neste mundo, para através da política e do exercício do poder promover o bem comum, recompensar os bons e punir os maus. Como tal, haverão de responder diante de Deus pela corrupção na política, pela insensibilidade e pelo egoísmo. A visão do cargo político como sendo uma delegação divina desperta no povo o devido respeito pelas autoridades, mas, ao mesmo tempo, produz nestas autoridades o senso crítico do dever. 

2) A fé reformada resiste ao conceito da soberania absoluta do Estado, “um produto do panteísmo filosófico alemão” (Abraham Kuyper, 2002, p. 96) e ao conceito da soberania absoluta do povo, conforme defendido pela revolução francesa. O poder reside em Deus. Tanto o poder do Estado quanto do povo são delegados por ele visando a organização da humanidade. Como conseqüência, a fé reformada defende que nenhum ser humano tem poder sobre outro, a não ser quando delegado por Deus, ao ocupar um cargo de autoridade. Desta forma, a fé reformada se levanta contra toda opressão política à mulher, ao pobre e ao estrangeiro, contra todo sistema político que produza escravidão, contra o conceito de castas e da distinção entre sacerdotes e leigos. Luta para que cada pessoa seja reconhecida e tratada, em termos políticos e sociais, como uma criatura feita à imagem de Deus.

3) Já que o poder não é intrínseco ao ser humano, mas uma delegação divina, deve-se resistir a quem exerce o poder político em desacordo com a vontade de Deus. Esta vontade divina para os governantes se encontra claramente expressa na Bíblia, como por exemplo, nos Dez Mandamentos. Entre eles encontramos proposições como “não furtarás”, “não dirás falso testemunho”, “não matarás”. Essas proposições refletem absolutos éticos presentes em todas as civilizações, em função de todos os seres humanos levarem em sua constituição a imagem e semelhança de Deus – com maior ou menor precisão, em função da imperfeição moral existente na humanidade. Nenhum governante tem imunidade contra a Lei de Deus. Na tradição protestante reformada, resistir à corrupção na política é dever de todos e a vontade de Deus para cada cristão verdadeiro.

Um outro conceito fundamental da visão reformada é que a humanidade se encontra em um estado de queda moral e espiritual, sendo em princípio inclinada a fazer o mal antes que o bem. Em decorrência disto, mais dois princípios norteadores da ética na política se seguem:

1) A política é entendida como uma necessidade diante desta situação de queda moral. Foi por esta causa que Deus instituiu os magistrados. É imprescindível que haja autoridade que reprima a injustiça, proteja os inocentes, socorra os oprimidos e promova o bem-estar dos cidadãos. A política, como ciência de governar, se torna indispensável, para que os governantes exerçam sua função com verdade e justiça. A fé reformada acata e se submete aos poderes constituídos, embora negue ao Estado o direito de se imiscuir em matérias de religião. Reconhece a necessidade do exercício da autoridade, mas jamais ao custo da liberdade de consciência, dom precioso de Deus.

2) A corrupção na política é vista pela fé reformada como tendo origem primariamente no coração dos seres humanos. A Bíblia afirma que não há sequer uma pessoa justa neste mundo. “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3:23). Jesus Cristo disse que é do coração dos homens e das mulheres que procedem “maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mateus 15.19-20). Quando a causa é identificada, há condições de se buscar o remédio adequado. Aqui se percebe a insuficiência de éticas humanistas reducionistas, que analisam apenas aspectos sociológicos e antropológicos da corrupção na política, deixando de incluir a dimensão pessoal: egoísmo, maldade, crueldade, despotismo, avareza, inveja, cobiça. O protestantismo reformado prega uma conversão interior dos governantes e dos governados a Deus, que se arrependam do mal e pratiquem obras de justiça.

Por fim, o conceito de graça comum (concedida a todos) ensina que há princípios gerais que, se seguidos e aplicados, produzirão a ética na política. Segundo este conceito, Deus abençoa a humanidade em geral com virtudes e qualidades, independentemente das convicções religiosas e políticas das pessoas. É por este motivo que encontramos quem se professa cristão e não tem ética, e encontramos a ética funcionando pelas mãos de quem não se declara cristão. Ao reconhecer a graça comum de Deus, o protestantismo reformado entende que o caminho para a ética na política não é necessariamente converter todos ao cristianismo e nem colocar em cargos políticos quem se professa cristão, mas contribuir para que os princípios acima mencionados sejam reconhecidos e exercidos por todos, independentemente da convicção religiosa.
 

O Papel da Universidade

O protestantismo reformado, desde o seu início, foi uma das forças geradoras da democracia moderna, com seu espírito revolucionário, defensor da liberdade e desafiador das estruturas religiosas, sociais e políticas que escravizam o homem. As inúmeras universidades reformadas que nasceram após a Reforma protestante nos paises que a abraçaram, como Suíça, Inglaterra, Holanda, Escócia, Hungria e posteriormente os Estados Unidos, se tornaram centros difusores dos princípios da Reforma, quer pela produção e ministério de seus docentes, quer pela formação de centenas e centenas de cidadãos imbuídos deste mesmo espírito. Podemos mencionar entre elas as universidades de Genebra, Harvard, Yale, Princeton e a Universidade Livre de Amsterdã. Nelas, foram estudados e transmitidos os princípios e valores que serviram de base para a formação de uma consciência ética na política desses paises. Muitos dos grandes estadistas, chefes políticos e autoridades civis dos países mais desenvolvidos estudaram em universidades reformadas. Estas universidades, sendo confessionais, adotaram em sua fundação, como referencial explícito, as confissões de fé oriundas da Reforma protestante.

As universidades são centros formadores dos que haverão, um dia, de influenciar a opinião pública e, talvez, exercer o poder político. Elas têm um papel crucial diante do clamor nacional por ética na política. E sem excluir as demais, as universidades confessionais têm uma oportunidade histórica de contribuir para que este clamor seja atendido, ainda que a longo prazo, visto que a eficácia da universidade, neste aspecto, reside no processo de educar cidadãos.
 

Conclusão

A Universidade Presbiteriana Mackenzie, cada vez mais consciente de sua origem e vocação cristã reformada, almeja contribuir para a ética na política nacional através de uma educação que leve em consideração os princípios morais e espirituais do cristianismo reformado, uma das maiores forças geradoras da democracia. O eixo do ensino deve refletir a confessionalidade, sem ferir a autonomia universitária. O eixo da pesquisa deve descobrir maneiras criativas de aplicar à realidade brasileira a força do protestantismo reformado que forjou as políticas democráticas e ensejou o desenvolvimento da moderna ciência em outros tempos e em outras terras. E o eixo da extensão deve estender a mão de misericórdia à comunidade, enquanto trabalhamos por dias melhores.
 

Rev. Augustus Nicodemus Lopes
Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Obras Mencionadas
BIÉLER, André, 1999. A Força Oculta dos Protestantes. São Paulo: Editora Cultura Cristã.
KUYPER, Abraham, 2002. Calvinismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã.