br.freepik.com
“A tecnologia não é boa, nem ruim,
também não é neutra”
Melvin Kranzberg
Robinson Grangeiro Monteiro, chanceler do Mackenzie
Foto: NTAI/Mackenzie
“A tecnologia não é boa, nem ruim,
também não é neutra”
Melvin Kranzberg
Em 1985, por ocasião do encontro anual da Society for the History of Technology, o professor de História da Tecnologia no Georgia Institute of Technology e fundador-editor da revista Technology and Culture ministrou uma palestra explicando “As leis de Kranzberg”, as quais, segundo ele, são “uma série de truísmos derivados de uma longa imersão no estudo do desenvolvimento da tecnologia e sua interação com as mudanças socioculturais” (Kranzberg, 1986)*.
A primeira lei, por exemplo, afirma que “a tecnologia não é boa, nem ruim, também não é neutra”, enfatizando a interação entre a tecnologia e a ecologia social e as diferentes consequências, a depender dos contextos, das circunstâncias e, principalmente, da própria ética do usuário da tecnologia.
Bem antes disso, em uma campanha governamental em prol da segurança no trânsito brasileiro, o slogan era “Não faça de seu carro uma arma, a vítima pode ser você”. Atualmente, as atenções se voltam para os avanços no desenvolvimento da inteligência artificial, sobretudo a inteligência generativa capaz de ter autoconsciência e gerar conhecimento próprio com base em dados ou estímulos.
Como se vê, o avanço da ciência e da tecnologia é insofreável, cabendo a seus usuários vetorizar o potencial de suas aplicações em prol da humanidade, em vez de vê-la como um inimigo ou, ainda pior, tornar-se vítima dela.
Essa reflexão tem pendor de relevância e saliência inquestionáveis, na medida em que, não por coincidência, alguns historiadores e filósofos da ciência decretam a morte da própria Lei de Moore, que predizia uma curva exponencial da inovação e da produção tecnológica, por absoluta obsolescência de seu modelo, visto que ela mesma já não serve para prever a aceleração tecnológica nesse início do século XXI.
Obviamente, como em outros momentos da história do desenvolvimento humano, questionamentos sobre aspectos éticos no uso da tecnologia são levantados. E eles não são diferentes daqueles do passado, pois, como diria o personagem Jorge em o nome da rosa, de Umberto Eco: “Não há progresso, não há revolução de era, na aventura do saber, mas, no máximo, contínua e sublime recapitulação”. Pelo menos, nesse aspecto, é possível concordar com o velho monge, que era a própria memória daquela biblioteca medieval, pois mudam os tempos e os personagens, mas as tendências permanecem inalteradas.
Do ponto de vista do cristianismo, as oportunidades do bom uso da ciência e da tecnologia devem sempre se voltar para a produção do máximo conforto, da segurança e do desenvolvimento do mandato original do Criador de “cultivar e guardar o jardim” (Gênesis 2:15). Entretanto, a história demonstra que, do lado de fora e já expulso por sua rebeldia, o desafio tem sido o de não tornar o planeta um palco de horrores para a sanha humana de expropriar os recursos naturais e ultrapassar os limites éticos do saber, em razão do próprio egoísmo, da ambição e da vaidade.
O principal risco ético do avanço da tecnologia é justamente vê-la como neutra, e não como uma extensão de seu criador humano, seja, por exemplo, por meio dos bancos de dados que abastecem qualquer processo de inteligência artificial, seja pela extensão das contradições humanas nos algoritmos, como preconceitos, discriminações e projetos ideológicos e políticos, pois até mesmo as criaturas tecnológicas também são criadas à imagem e semelhança de seus criadores humanos.
Na perspectiva escatológica, antes da perfeição de novos céus e nova terra, infelizmente o potencial autodestrutivo humano chegará ao ápice, porém isso não é motivo para a deserção e a desistência agora. Em meio ao erro, lutar pelo acerto faz parte da imago Dei no ser humano, que é o dever para com o jardim onde o Criador nos colocou. Cientistas, pesquisadores ou, simplesmente, homens e mulheres comuns, precisam refletir sobre a tecnologia e seu uso, a fim de que o melhor da semelhança divina que remanesce em nós seja o que enfrente os desafios, aproveite as oportunidades e ponha os limites.
*Kranzberg, Melvin. Technology and History: ‘Kranzberg’s Laws’. Technology and Culture, v. 27, n. 3, 1986, p. 544–560.