Caminhoneiros: a conta do populismo do governo e da irracionalidade da sociedade

28.05.2018

Cleveland Prates - colaborador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica. Foi Conselheiro do CADE, atualmente é professor de Economia da FGV-Law e Coordenador do Curso de Regulação de Mercados da Fipe.


A irracionalidade que tomou conta do país tem apenas escondido a quem realmente caberá a conta do acordo entre caminhoneiros e governo. Na realidade, o que estamos assistindo neste episódio é o que se conhece na literatura econômica como efeito rent-seeking, em que grupos (de interesse) organizados da sociedade se apoderam de decisões do Estado em benefício próprio e em detrimento dos demais. Para entender melhor o tamanho do problema, podemos segmentar os termos do acordo negociado em três partes: os que têm impacto na esfera das contas públicas; aqueles que atingem a política de preços da Petrobrás e de Concessionárias de Rodovias; e os que afrontam nitidamente a Constituição Federal, a livre iniciativa e a legislação de defesa da concorrência do país.

Na esfera das contas governamentais, é fato que o País vive um momento de déficits crescentes, com a elevação substancial da nossa dívida pública. Abrir mão de tributos neste momento só agravará a situação, com impacto futuro sobre inflação, juros e crescimento econômico. Em tais circunstâncias, a redução de impostos sobre o diesel implicará perda de arrecadação, que deverá ser compensada pela elevação (ou reoneração) de impostos em outras áreas. Note-se que a medida proposta pelo Ministério da Fazenda foi a reoneração da folha de pagamento de vários setores, com poucas exceções, dentre elas, o de transporte rodoviário de cargas. Mas esta decisão terá como resultado um mix de três efeitos: demissões (ou redução da oferta de empregos); repasse parcial para os preços finais; e, consequentemente, redução da venda de produtos nos mercados onerados.

O governo também sinalizou com o corte de gastos públicos. Mas dado o engessamento do orçamento público brasileiro, o efeito desta medida implicará a queda da já péssima qualidade do serviço prestado pelo Estado. O razoável seria revisar a estrutura de impostos do setor dentro de um contexto mais amplo de reformas do Estado, principalmente em um ambiente de reformas previdenciária e tributária.

De toda forma, qualquer discussão sobre redução de impostos no setor deve considerar também o fato de que o diesel é um produto altamente poluente, e como tal, a redução de seu preço implicará estímulo ao seu consumo e inibição de investimento em fontes de energias alternativas, na contramão do que tem sido feito em países de primeiro mundo.

No que diz respeito ao capítulo sobre política de preços, devemos lembrar que a Petrobrás é uma empresa de capital misto, inserida em um ambiente capitalista e, como tal, também deve seguir a lógica de mercado. Assim, é razoável que seus acionistas esperem que a empresa busque maximizar o lucro econômico e dividendos a serem distribuídos. Neste contexto, existem dois aspectos a serem entendidos.

O primeiro deles está relacionado ao fato de que elevações do preço do barril do petróleo no mercado internacional e desvalorizações cambiais têm impacto direto sobre a estrutura de custos contábeis da empresa. Isto porque, dada as características do óleo aqui extraído, o processo de produção de combustíveis no Brasil, necessita também da importação de óleo mais fino e de melhor qualidade. Desta forma, é natural que elevações dos custos da empresa derivados do mercado internacional sejam repassados para preço.

Já o segundo aspecto diz respeito ao conceito econômico de custo de oportunidade. Mais precisamente, ele representa o custo que se incorre por tomar uma decisão, abrindo mão de ganhos relacionados a decisões alternativas. No caso em questão, o custo de oportunidade de vender o petróleo no Brasil equivale àquilo que se deixa de ganhar por vende-lo no mercado exterior. Assim, toda vez que preço internacional do petróleo sobe, também se eleva o custo de oportunidade da Petrobrás em vender o produto no mercado nacional. Portanto, na visão do acionista, é razoável esperar que os preços também sejam elevados no mercado nacional e, consequentemente, aumente a lucratividade da Petrobrás; pois, do contrário, seria preferível deslocar seus investimentos para empresas petrolíferas no exterior.

Note-se que esta não é apenas uma visão meramente centrada nos interesses privados deste investidor. Isto porque a Petrobrás é uma empresa que, como qualquer uma do setor, depende pesadamente de capital de terceiros para investir e elevar sua produção. Assim, contrariar a lógica econômica do mercado implica elevar seu risco percebido e, consequentemente, o seu custo do capital, além de seu endividamento.

Neste ponto, devemos lembrar que uma parte dos sugeridos preços elevados que pagamos hoje pelos combustíveis são resultados de políticas adotadas pelo governo passado, que envolveram decisões ineficientes de alocação de recursos e até mesmo o processo de corrupção que assistimos na Lava Jato. Fato é que para poder pagar a astronômica dívida constituída ao longo dos anos, resultado inclusive da interferência governamental sobre os preços da empresa, e ainda sobrar dinheiro para a realização de investimentos, não há como se trabalhar com preços baixos no curto e médio prazos.

Por esta razão, com a redução de preços do diesel para a Petrobrás, o governo também se propôs a compensa-la via transferência de dinheiro público. Mas novamente há aqui um problema de escolha do Estado que envolve o conceito de custo de oportunidade, tão ignorado pelos governantes de plantão. Mais precisamente, a pergunta que fica é o que seria melhor: alocar recursos para subsidiar o diesel, e os grupos que fazem uso deste produto, ou investir em saúde, educação e segurança pública? Parece me  que a resposta é óbvia e dispensa comentários.

Alternativamente, há ainda que se levantar a hipótese de que este repasse de dinheiro público não seja feito, ou que o seja de maneira insuficiente para resolver o problema da empresa. Se isto ocorrer, caberá a Petrobrás compensar a perda com o diesel por meio da elevação do preço em outros produtos, como o gás, a gasolina ou o QAV (combustível de aviação), transferindo novamente o ônus desta decisão para o resto da sociedade.

Se o governo realmente pretendesse melhorar o preço final ao consumidor (e não apenas para uma parte da sociedade) deveria propor um processo de privatização amplo e irrestrito no setor, que incorporasse um modelo competitivo e desverticalizado, que facilitasse a entrada de novos players no setor. Aceitar controlar preços da Petrobrás ou, pior ainda, regular o preço final na bomba de combustível só inibirá investimentos, reduzirá a oferta no médio e longo prazo e provocará elevações futuras de preços.

Ainda sobre o capítulo interferência indevida sobre preços, a exigência de isenção tarifária (ou não cobrança sobre o eixo suspensa de caminhões) também impactará o resto da sociedade. Para entender isso vale lembrar que toda modelagem de concessões envolve uma previsão sobre demanda futura e sobre os valores pagos por cada classe de usuários, que certamente são especificadas nos respectivos editais de licitação. Ao se alterar as condições iniciais propostas para o transporte de caminhões, certamente caberá aos Concessionários o direito a um reequilíbrio econômico do contrato pactuado com os respectivos Concedentes, que certamente se dará por meio da elevação do pedágio para os demais usuários (carros e ônibus).

Há que se entender também que definir tabela de referência de frete de serviço de transporte ou cotas para a contratação de determinados grupos pela CONAB, inclusive com dispensa de licitação, ferem princípios basilares da livre iniciativa e da livre concorrência. Conforme entendimento já exarado tantas vezes pelo CADE, as tabelas de referência servem, em sua grande maioria das vezes, como parâmetros para se definir preços anticompetitivos entre concorrentes. Da mesma forma, o estabelecimento de cotas tem efeito semelhante, na medida em que cria um nicho de mercado paralelo e restrito, garantindo uma renda extra para o grupo que dele participa. Tais objetivos foram nitidamente buscados a partir de uma ação coordenada de boicotes por parte dos caminhoneiros e empresas de transportes, tendo por efeito a distorção da concorrência e a elevação de preços ao longo de toda a cadeia de distribuição.

Neste sentido, o inciso I (a) do § 3o do artigo 36 da Lei 12.529/2011 é taxativo em considerar com infração à ordem econômica “acordar, combinar, manipular ou ajustar com concorrente, sob qualquer forma os preços de bens ou serviços ofertados individualmente”. Além disso, os incisos III, V e XIII do mesmo artigo definem também como infração: “limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado; impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição; e destruir, inutilizar ou açambarcar matérias-primas, produtos intermediários ou acabados, assim como destruir, inutilizar ou dificultar a operação de equipamentos destinados a produzi-los, distribuí-los ou transportá-los”. Como se percebe, o conjunto de condutas desses profissionais se enquadra perfeitamente na Lei 12.529, sendo passíveis de abertura de um processo administrativo pelo CADE.

Da maneira análoga, esta mesma lei também define sanções administrativas para quem estimula um acordo como este, que tem como nítido objetivo restringir a concorrência no mercado de transporte rodoviário. Neste grupo podem ser incluídos desde sindicatos até agentes públicos. Isto porque no inciso II § 3o do artigo 36 da lei está claro que também é uma infração à ordem econômica promover, obter ou influenciar a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes.

Note-se ainda que tais condutas podem também ser enquadradas nos incisos I e II do artigo 4º da lei que definem crimes contra a ordem econômica (Lei 8.137/1990), cuja penas estão claramente definidas no Código Penal. Em outras palavras, estamos assistindo a um atentado ao princípio da livre iniciativa e concorrência preconizados no artigo 170 da Constituição Federal, com a conivência e até mesmo participação do Estado brasileiro.

Finalmente há que se considerar os incentivos de médio e longo prazo gerados a partir da extinção de ações judiciais possessórias e dos termos do acordo até agora aceitos pelo governo. Ao não impor as devidas penalidades aos que participaram do boicote dos caminhoneiros e ao aceitar termos nitidamente ilegais, que serão arcados pela sociedade, o atual governo indica para outros eventuais grupos de interesses que esta estratégia é aceitável e eficaz, fato que estimulará outros boicotes futuros. Aliás, já há notícias sobre possível greve dos petroleiros marcada para esta semana.

Em última instância, o atual governo está permitindo e estimulando um verdadeiro atentado às leis jurídicas e econômicas, induzindo o País a um verdadeiro regime anárquico.

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