A nulidade absoluta no processo Mariana Ferrer

16.11.202016h22 Comunicação - Marketing Mackenzie

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A nulidade absoluta no processo Mariana Ferrer

Soraia Mendes*

 

Muito se fala sobre o viés inquisitorial do processo penal. Contudo, pouco se diz, que, esta feição inquisitória é (e sempre foi) a única definição deste em relação às mulheres vítimas de violência, em especial de violência sexual. De fato, muito ainda precisa ser dito e (re)pensado quanto ao depoimento da vítima quando “o medo faz calar” ou quando “sua voz e comportamento” impõem a inexistente “carga” de ter de provar ser merecedora de proteção.

 

Humilhar, vexar, agredir, impor dor e sofrimento está no DNA do processo para as mulheres enquanto vítimas. A isso damos o nome de revitimização. E o caso de Mariana Ferrer, recentemente tornado público é, com muita tristeza, um bem acabado exemplo atual do cotidiano das que sobrevivem à violência e resistem ao sistema de justiça criminal. De outro lado, quem sabe, também seja ele um norte para refletirmos sobre os fatos como os ocorridos e entendermos que estes precisam ter consequências não só correcionais, mas também processuais penais.

 

Muito mais há que ser (re)pensado no processo penal no que concerne às garantias das vítimas (em especial, as mulheres) de serem tratadas com como sujeitos de direitos. Uma delas, como já tive oportunidade de escrever na obra Processo Penal Feminista (Ed. Atlas, 2020), diz respeito à nulidade em processos nos quais a dignidade da pessoa humana, mola propulsora do complexo constitucional, é violada.

 

Sem dúvida alguma um dos mais tormentosos temas da processualística penal é o sistema de nulidades. Por certo, muito em razão da matriz de inspiração de nosso Código de Processo Penal no (fascista) Código de Rocco. Mas, também, pela escancarada cultura político-criminal punitivista (por suposto sexista, racista e lgbtifóbica) que, na superfície ou no subterrâneo, representa sempre um freio a qualquer avanço rumo a um processo penal, no mínimo, formalmente democrático: ou seja, a um processo guiado pelas regras do jogo constitucional.

 

Daí porque ser justamente na prevalência do conjunto de valores, garantias e direitos previstos na Carta de 88 que precisamos iniciar o debate a respeito do significado e, repito, da resposta processual penal a ser dada no caso da justiça catarinense como, sobretudo, desejo eu, um paradigma para outros tantos. 

 

A dignidade da pessoa humana impõe ao Estado um dever de realizar ações positivas no sentido de assegura-la. E, dentre estas ações está o dever de proteção que, na linha do que ensina Alexy, outorga ao indivíduo o correspondente direito de exigir do Estado que este o proteja por meio de normas penais, de normas procedimentais, de atos administrativos, ou até mesmo por uma atuação concreta dos poderes públicos[1]. É, assim, exigível (mais do que meramente recomendável) que postura dos sujeitos do processo em seu contato com a vítima, muito especialmente no momento do depoimento (mas, não só!), guie-se, pelo respeito e pela garantia da dignidade humana e dos compromissos internacionais que a tomam como central e dos quais o Brasil é signatário.

 

A Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (adotada pela Resolução 48/104, da Assembleia Geral das Nações Unidas) insta os Estados-Membros, dentre outras obrigações, a prover mecanismos e procedimentos jurisdicionais acessíveis e sensíveis às necessidades das mulheres submetidas a violência e que assegurem o processamento justo dos casos (10, “d”).

 

De igual sorte, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 09 de junho de 1994, (incorporada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto n. 1.973, de 01 de agosto de 1996), determina como dever do Estado não somente que este estabeleça procedimentos jurídicos justos e eficazes para a mulher sujeitada à violência, inclusive, entre outros, medidas de proteção, juízo oportuno e efetivo acesso a tais processos (art. 7, “f”); mas, antes de tudo, que aja positivamente para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher (art. 7, “e”).

 

Afastar-se de todo esse arcabouço é tomar distância da dignidade humana. É violar a Constituição. É desrespeitar a convencionalidade. E é, por consequência, macular com a nulidade absoluta todo o processo.

 

É preciso que magistrados/as e membros do MP, no exercício de suas funções respeitem e garantam essa regra de ouro do jogo. E, em particular, que membros da advocacia e da defensoria pública compreendam, definitivamente, ser possível realizar a defesa do réu sem violar ainda mais a vítima. Do contrário, a consequência processual há de ser a nulidade, pois toda a normatividade maior alcança pessoas rés, condenadas, e também vítimas (!).

 

[1] ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudíos Políticos y Constitucionales, 2002

 

*Soraia Mendes é pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas (UFRJ), doutora em Direito, Estado e Constituição (UnB), mestra em Ciência Política (UFRGS). Professora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie Brasília (FPMB) e Advogada criminalista e especialista em direitos das mulheres

 

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