Para além das questões políticas que envolvem a questão da indicação, percebo que mais importante do que torcer pelo sucesso ou insucesso da empreitada, é compreender o que é e quais sãos as atribuições da Secretaria Especial da Cultura, pois somente compreendendo a sua natureza e funcionamento é que poderemos compreender a sua real necessidade.

30.01.2020

Allan Augusto Gallo Antonio


Desde o lamentável episódio em que o então secretário da Cultura Roberto Alvim  parafraseou o discurso do nazista Joseph Goebbels, diariamente notícias envolvendo a Secretaria Especial da Cultura tem ganhado as manchetes de diversos jornais brasileiros. Na maior parte das vezes as notícias versam sobre a  reverberação do pronunciamento estapafúrdio do ex-Secretário ou sobre o convite feito pelo Presidente Jair Bolsonaro à atriz Regina Duarte para assumir a Secretaria.

Para além das questões políticas que envolvem a questão da indicação, percebo que mais importante do que torcer pelo sucesso ou insucesso da empreitada, é compreender o que é e quais sãos as atribuições da Secretaria Especial da Cultura, pois somente compreendendo a sua natureza e funcionamento é que poderemos compreender a sua real necessidade.

A Secretaria Especial da Cultura é um órgão do Governo Federal, que sucedeu o extinto Ministério da Cultura (MinC). Pode parecer óbvio dizer isso, mas como órgão do Governo Federal ela está na esfera de gestão de um Secretário subordinado a um Ministro de Estado, que por sua vez está sob o comando do Presidente da República.

Foi em 1985 durante o Governo de José Sarney, que o então Ministério da Cultura foi criado por um desmembramento do Ministério da Educação (MEC). É inegável que a instituição do MinC partiu de um ideal nobre de promoção da cultura em um país tão necessitado como o nosso. No documento de 2018 que reconstituiu o Ministério da Cultura - após breve extinção durante a gestão de Michel Temer - o nobre ideal de propagação da cultura ficou evidente na definição de sua missão:

“Promover o crescimento cultural, ampliar o acesso à cultura e fortalecer a economia criativa em todas as regiões do país, contribuindo para o desenvolvimento do Brasil.(1)

Em 2019 após assumir a Presidência da República, o atual Presidente converteu o Ministério da Cultura em uma Secretaria Especial subordinada ao Ministério da Cidadania e posteriormente ao Ministério do Turismo. Em linhas gerais a Secretaria tem como competência atuar na formulação de políticas, programas, projetos e ações que promovam a cidadania por meio da cultura, a promoção do acesso aos bens culturais, a gestão da economia criativa brasileira e a proteção dos direitos autorais.

Além dessas competências de caráter institucional, o setor audiovisual e a Agência Nacional do Cinema (Ancine) estão sob o guarda-chuva da secretaria, assim como o Programa Nacional de Cultura, o Programa de Incentivo à Leitura, o Programa de Cultura do Trabalhador e o Programa Nacional de Apoio à Cultura, este instituído pela famosa Lei Rouanet.

Em termos de estrutura, a Secretaria possui sete entidades diretas, sendo três autarquias e quatro fundações, além de possuir mais seis secretarias nacionais apensas à sua estrutura.

De acordo com informações divulgadas na mídia o orçamento do órgão para 2020 é de R$ 2 bilhões. Desse total estão previstos R$ 404 milhões para o Fundo Nacional da Cultura (FNC) e entidades vinculadas. O valor inclui gastos com pessoal ativo e com custeio da estrutura (luz, aluguel e telefone).(2)

Uma vez que já compreendemos a estrutura e missão da Secretaria, é preciso levar em conta três pontos argumentos de natureza política e econômica, que ao meu ver fazem com que a existência da Secretaria seja desnecessária e por vezes até maléfica.

Custos difusos e benefícios concentrados

Ninguém duvida das boas intenções dos que integram a Secretaria e muito menos do valor astronômico envolvido no custeio do órgão, mas o que mais gera preocupação na maioria das pessoas são os resultados a serem entregues com o dinheiro investido.

Ao mesmo tempo que existe uma certa desconfiança sobre a entrega de resultados, existe uma falsa impressão que nos leva a pensar que os benefícios entregues pela Secretaria são infinitamente maiores do que o valor real que pagamos por eles. Em outras palavras, ao pagar nossos tributos corretamente de modo que sirvam de para custear a Secretaria e suas atividades, temos a falsa sensação de que teremos um retorno (direto ou indireto) muito superior ao valor pago. Infelizmente isso não passa de uma ilusão fiscal.

Que os tributos arrecadados para financiar as atividades da Secretaria beneficiarão um grupo razoavelmente grande de pessoas é uma conclusão simples de se chegar. Funcionários públicos, artistas, formadores de opinião e consumidores de produtos derivados da atuação estatal terão um benefício claro muito superior ao valor que eles próprios pagaram de tributos. No entanto, todos os outros cidadãos comuns, pagadores de impostos que contribuíram para o custeio dos serviços culturais não serão beneficiados por eles.

Definição de prioridades e captura política

Quando o Estado toma para si a prerrogativa de arrecadar dinheiro por meio de tributos e, com o valor dos tributos arrecadados decide planejar o financiamento da cultura, ele está arrogando para si uma posição em que se julga ter mais informações sobre as necessidades culturais dos cidadãos - o que é absolutamente questionável num país com tanta diversidade como o Brasil. Ele toma para si a prerrogativa de arrecadar os tributos e redistribuí-lo de uma forma supostamente mais eficiente. No entanto, não existem métricas confiáveis para avaliar se essa redistribuição é de fato mais eficiente.

Para além da arrogância do planejamento existe sempre a tendência em priorizar projetos que envolvam uma agenda específica de interesses do próprio governo, seja na edição de filmes patrióticos sobres seus líderes, sobre as conquistas do partido, seja na promoção ou mesmo cancelamento de eventos que afrontem o governo.

Nesse ponto, a cultura pode sucumbir à vontade de que tudo seja dirigido por uma “concepção unitária do todo” e que adote de bom grado teorias e visões de mundo que pareçam uma justificação racional para os ações políticas e propagandistas à esquerda e à direita do espectro político.

Disputa pela mesma praça pública

Numa sociedade heterógena como a brasileira, onde existem tantas matrizes étnicas, culturais e religiosas é natural que exista uma disputa pela praça pública. Representantes dos mais diversos grupos sociais querem sentir que suas comunidades e ideias possuem espaço na formação da cultura nacional, mesmo que muitas vezes tais grupos sejam antagônicos compitam pelos mesmos recursos econômicos.

A existência de uma estrutura como a Secretaria da Cultura sinaliza a existência de recursos que poderão servir para a promoção de diversas ideias no tecido social, desse modo, sempre haverá uma situação em que um dos grupos de interesse se aproveitará dos recursos e estruturas disponíveis, enquanto o outro lhe fará oposição julgando que suas atividades são um desperdício de recursos.

A questão da existência de uma secretaria de cultura vai além de decidir se serão patrocinadas empreitadas culturais de caráter religioso, regional, sexual, político ou até mesmo popular. Muito além de escolher patrocinar um filme evangélico ou um filme sobre diversidade sexual, é preciso entender que numa sociedade tão plural como a nossa, ao obrigar que um grupo custeie a produção cultural de outro teremos a receita certa para criação de tensões políticas e sociais que em nada contribuirão para o bem-estar de todos os indivíduos.

Para que não haja disputa pelos recursos e pela máquina estatal é preciso desmontar o que foi criado. Trocar o piloto da máquina ou mudar sua configuração de tempos em tempos não é a receita para a paz.

 

Referências Bibliográficas 


(1) PORTARIA Nº 119, DE 20 DE DEZEMBRO DE 2018  

(2) REGINA DUARTE COMANDARIA R$ 2 BILHÕES DE ORÇAMENTO NA CULTURA. Disponível em: https://glo.bo/2tbLAFD

GIANTURCO,Adriano. A ciência da política: uma introdução. 2018.

HAYEK, Friedrich August. O caminho para a servidão. Edições 70, 2009.

Créditos da imagem:  Ueslei Marcelino/Reuters

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