O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 57, de 2018, de autoria do Senador Humberto Costa (PT/PE) dispõe sobre a criação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine). Tal regramento tem, teoricamente, a finalidade de induzir o crescimento da produção nacional a partir dos recursos auferidos pelo mencionado tributo, o qual incidiria sobre a comunicação audiovisual sob demanda e a distribuição de vídeo doméstico. É tema que merece reflexão não somente pelo impacto que pode acarretar no setor econômico sob análise, como também pela visão de mundo que lhe subjaz.
13.12.2019
Por Prof. Dr. Elton Duarte Batalha
O Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 57, de 2018, de autoria do Senador Humberto Costa (PT/PE) dispõe sobre a criação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine). Tal regramento tem, teoricamente, a finalidade de induzir o crescimento da produção nacional a partir dos recursos auferidos pelo mencionado tributo, o qual incidiria sobre a comunicação audiovisual sob demanda e a distribuição de vídeo doméstico. É tema que merece reflexão não somente pelo impacto que pode acarretar no setor econômico sob análise, como também pela visão de mundo que lhe subjaz.
Campo de crescente importância, a comunicação audiovisual sob demanda surgiu com o desenvolvimento da tecnologia no âmbito das telecomunicações. De modo disruptivo, as antigas videolocadoras praticamente desapareceram, assim como aparelhos de DVD e de Blu-Ray, com o surgimento de serviços como Netflix, Amazon Prime Vídeo, Globoplay, Net Now, entre outros. A praticidade propiciada pelo vídeo on demand é a demonstração concreta da destruição criativa, de Schumpeter, ou da inovação destruidora, de Luc Ferry. O desaparecimento da rede de locadoras Blockbuster, há alguns anos, materializou o fenômeno descrito pelos mencionados pensadores.
O PLS nº 57, de 2018, porém, vislumbra tal fenômeno sob um prisma específico, ao propor a criação de uma contribuição com a suposta finalidade de fomentar a produção audiovisual brasileira, além de determinar a interferência estatal no conteúdo disponibilizado para os consumidores. A despeito de eventual boa intenção do legislador, as potenciais consequências econômicas e sociais não parecem servir de argumento para a procedência do projeto de lei sob estudo.
Do ponto de vista econômico, a tentativa de interferência governamental no catálogo das empresas, com a estipulação de percentual de obras brasileiras, tende a diminuir o número total de produtos disponíveis, evitando qualquer possibilidade de punição por parte das empresas. Inexistindo produções nacionais em número suficiente, não haveria alternativa a não ser reduzir o total disponível, de modo a manter-se dentro do limite legalmente estabelecido. Ademais, nada garante que os recursos auferidos com a tributação sejam utilizados no aumento da qualidade das obras brasileiras, aspecto sempre discutido quando comparado não somente com produções norte-americanas, mas também com obras argentinas, por exemplo. Dinheiro, nesse caso, não é sinônimo necessariamente de qualidade. Reserva de mercado, aliás, não costuma redundar em aumento de valor intrínseco do produto, fenômeno observável mais frequentemente em setores nos quais há competição e segurança jurídica.
Em termos sociais, a intervenção governamental reforça a noção de que o Estado deve orientar a sociedade no sentido daquilo que seja a melhor escolha. Os brasileiros talvez vejam mais qualidade em obras estrangeiras e não há problema nisso. A melhor maneira de instigar o aumento de produção nacional é investir em educação, algo que ampliaria a massa crítica nacional, a qual demandaria obras de maior densidade intelectual. Além disso, o caráter nacionalista do PLS incomoda em uma era na qual a visão mais aberta ao mundo, trazida pela globalização, ganha relevância. O anacronismo da visão provinciana que busca olhar para o que há dentro das fronteiras destoa do cosmopolitismo que preconiza a necessidade de olhar para outras experiências como forma, inclusive, de reafirmação da identidade, pois, como a noção mais básica de antropologia aponta, é a observação de diferenças que permite o delineamento da relação eu-outro.
Juridicamente, o PLS nº 57, de 2018, garante a participação de profissionais autóctones na execução de obras audiovisuais nacionais, determinando percentual de obras brasileiras no catálogo (no mínimo, 20% do total de horas ofertado), com ordem aos provedores de comunicação de investimento direto em produções nacionais e destaque do mecanismo de busca quanto a tais obras (artigos 12). O percentual da receita bruta anual do provedor do serviço de vídeo sob demanda que deve ser utilizado na produção ou aquisição de direitos de licenciamento de obras nacionais pode chegar a 4% (artigo 15). A Condecine é tributo cuja base de cálculo será a receita bruta anual das empresas contribuintes, podendo a alíquota chegar a até 4%, com evidente reflexo no valor dos serviços prestados à população. O recolhimento dos valores deverá ocorrer até 31 de março do ano seguinte ao da apuração, com a
destinação dos recursos ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), conforme determina o artigo 23 do referido projeto de lei.
Nota-se, enfim, mais uma vez, a tentativa de interferência estatal na liberdade de escolha do consumidor, acompanhada da criação de mais um tributo, de forma a prejudicar o cidadão duplamente, seja no âmbito civil, seja no econômico. Um país verdadeiramente democrático é aquele em que a população tem suas diversas liberdades respeitadas. A ideia de que a sociedade precisa de um Estado que a tutele é anacrônica e não está de acordo com a noção mais moderna de cidadania ativa, na qual o indivíduo é respeitado em seus interesses, responsabilizando-se por suas escolhas. A Condecine representa mais do mesmo: a presença esmagadora e desnecessária do Leviatã na vida da população.
Autor: Elton Duarte Batalha – Professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado. Doutor em Direito pela USP